Prezados colegas de curso, vocês conhecem a Teoria da Katchanga que envolve as decisões do STF? Se não conhecem, posto este primoroso e cômico texto que faz uma boa crítica às decisões judiciais da Corte Máxima brasileira. O autor do artigo é o Professor de Direito Constitucional e Juiz Federal em Fortaleza/CE, George Marmelstein Lima. Para ler o texto na íntegra clique em “LEIA MAIS”, logo abaixo.
ALEXY À BRASILEIRA OU A TEORIA DA KATCHANGA
Entre nós, vigora a teoria da Katchanga, já que
ninguém sabe ao certo quais são as regras do jogo. Quem dá as cartas é quem
define quem vai ganhar, sem precisar explicar os motivos.
Certa semana, viajei para Floripa para
ministrar minha aula no módulo de direito constitucional na Emagis. Após as
aulas, dei uma volta pela cidade com alguns juízes federais que participaram do
curso e, através deles, ouvi a seguinte anedota:
Um rico senhor chega a um cassino e
senta-se sozinho em uma mesa no canto do salão principal. O dono do cassino,
percebendo que aquela seria uma ótima oportunidade de tirar um pouco do
dinheiro do homem rico, perguntou se ele não desejaria jogar.
— Temos roleta, blackjack, texas holden’
e o que mais lhe interessar, disse o dono do Cassino.
— Nada disso me interessa, respondeu o
cliente. Só jogo a Katchanga.
O dono do cassino perguntou para todos
os crupiês lá presentes se algum deles conhecia a tal da Katchanga. Nada.
Ninguém sabia que diabo de jogo era aquele.
Então, o dono do cassino teve uma ideia.
Disse para os melhores crupiês jogarem a tal da Katchanga com o cliente mesmo
sem conhecer as regras para tentar entender o jogo e assim que eles dominassem
as técnicas básicas, tentariam extrair o máximo de dinheiro possível daquele
“pote do ouro”.
E assim foi feito.
Na primeira mão, o cliente deu as cartas
e, do nada, gritou: “Katchanga!” E levou todo o dinheiro que estava na mesa.
Na segunda mão, a mesma coisa.
Katchanga! E novamente o cliente limpou a mesa.
Assim foi durante a noite toda. Sempre o
rico senhor dava o seu grito de Katchanga e ficava com o dinheiro dos
incrédulos e confusos crupiês.
De repente, um dos crupiês teve uma ideia.
Seria mais rápido do que o homem rico. Assim que as cartas foram distribuídas,
o crupiê rapidamente gritou com ar de superioridade: “Katchanga!”
Já ia pegar o dinheiro da mesa quando o
homem rico, com uma voz mansa mas segura, disse: “Espere aí. Eu tenho uma
Katchanga Real!”. E mais uma vez levou todo o dinheiro da mesa…
Ao ouvir essa piada, lembrei
imediatamente do oba-oba constitucional que a prática jurídica brasileira
adotou a partir das ideias de Alexy.
Como é do costume brasileiro, a teoria
dos princípios de Alexy foi, em grande parte, distorcida quando chegou por
aqui.
Para compreender o que quero dizer, vou
explicar, bem sinteticamente, os pontos principais da teoria de Alexy.
Alexy parte de algumas premissas básicas
e necessariamente interligadas:
(a) em primeiro lugar, a ideia de que os
direitos fundamentais possuem, em grande medida, a estrutura de princípios,
sendo, portanto, mandamentos de otimização que devem ser efetivados ao máximo,
dentro das possibilidades fáticas e jurídicas que surjam concretamente;
(b) em segundo lugar, o reconhecimento
de que, em um sistema comprometido com os valores constitucionais, é frequente
a ocorrência de colisões entre os princípios que, invariavelmente, acarretará
restrições recíprocas entre essas normas (daí a relativização dos direitos
fundamentais);
(c) em terceiro lugar, a conclusão de
que, para solucionar o problema das colisões de princípios, a ponderação ou
sopesamento (ou ainda proporcionalidade em sentido estrito) é uma técnica
indispensável;
(d) por fim, mas não menos importante,
que o sopesamento deve ser bem fundamentado, calcado em uma sólida e objetiva
argumentação jurídica, para não ser arbitrário e irracional.
Os itens a, b e c já estão bem
consolidados na mentalidade forense brasileira. Hoje, já existem diversas
decisões do Supremo Tribunal Federal aceitando a tese de relativização dos
direitos fundamentais, com base na percepção de que as normas constitucionais
costumam limitar-se entre si, já que protegem valores potencialmente
colidentes. Do mesmo modo, há menções expressas à técnica da ponderação,
demonstrando que as ideias básicas de Alexy já fazem parte do discurso
judicial.
O problema todo é que não se costuma
enfatizar adequadamente o último item, a saber, a necessidade de argumentar
objetivamente e de decidir com transparência. Esse ponto é bastante negligenciado
pela prática constitucional brasileira. Costuma-se gastar muita tinta e papel
para justificar a existência da colisão de direitos fundamentais e a sua
consequente relativização, mas, na hora do pega pra capar, esquece-se de
fundamentar consistentemente a escolha.
Por isso, todas as críticas que
geralmente são feitas à técnica da ponderação – por ser irracional, pouco
transparente, arbitrária, subjetiva, antidemocrática, imprevisível, insegura e
por aí vai – são, em grande medida, procedentes diante da realidade brasileira.
Entre nós, vigora a teoria da Katchanga, já que ninguém sabe ao certo quais são
as regras do jogo. Quem dá as cartas é quem define quem vai ganhar, sem
precisar explicar os motivos.
Virgílio Afonso da Silva conseguiu
captar bem esse fenômeno no seu texto “O Proporcional e o Razoável”. Ele
apontou diversos casos em que o STF, utilizando do pretexto de que os direitos
fundamentais podem ser relativizados com base no princípio da
proporcionalidade, simplesmente invalidou o ato normativo questionado sem
demonstrar objetivamente porque o ato seria desproporcional.
Para ele, “a invocação da
proporcionalidade [na jurisprudência do STF] é, não raramente, um mero recurso
a um tópos, com caráter meramente retórico, e não sistemático (…). O raciocínio
costuma ser muito simplista e mecânico. Resumidamente: (a) a constituição
consagra a regra da proporcionalidade; (b) o ato questionado não respeita essa
exigência; (c) o ato questionado é inconstitucional”.
Um exemplo ilustrativo desse fenômeno
ocorreu com o Caso da Pesagem dos Botijões de Gás (STF, ADI 855-2/DF).
O Estado do Paraná aprovou uma lei
obrigando que os revendedores de gás pesassem os botijões na frente do
consumidor antes de vendê-los. A referida norma atende ao princípio da defesa
do consumidor, previsto na Constituição. E certamente não deve ter sido fácil
aprová-la, em razão do lobby contrário dos revendedores de gás. Mesmo assim, a
defesa do consumidor falou mais alto, e a lei foi aprovada pela Assembleia
Legislativa, obedecendo formalmente a todas as regras do procedimento
legislativo.
A lei, contudo, foi reputada
inconstitucional pelo STF por ser “irrazoável e não proporcional”. Que aspectos
da proporcionalidade foram violados? Ninguém sabe, pois não há na decisão do
STF. Katchanga!
No fundo, a ideia de sopesamento/
balanceamento/ ponderação/ proporcionalidade não está sendo utilizada para
reforçar a carga argumentativa da decisão, mas justamente para desobrigar o
julgador de fundamentar. É como se a simples invocação do princípio da proporcionalidade
fosse suficiente para tomar qualquer decisão que seja. O princípio da
proporcionalidade é a katchanga real!
Não pretendo, com as críticas acima,
atacar a teoria dos princípios em si, mas sim o uso distorcido que se faz dela
aqui no Brasil. Como bem apontou o Daniel Sarmento: “muitos juízes,
deslumbrados diante dos princípios e da possibilidade de, através deles,
buscarem a justiça – ou o que entendem por justiça -, passaram a negligenciar
do seu dever de fundamentar racionalmente os seus julgamentos. Esta ‘euforia’
com os princípios abriu um espaço muito maior para o decisionismo judicial. Um
decisionismo travestido sob as vestes do politicamente correto, orgulhoso com
os seus jargões grandiloquentes e com a sua retórica inflamada, mas sempre um
decisionismo. Os princípios constitucionais, neste quadro, converteram-se em
verdadeiras ‘varinhas de condão’: com eles, o julgador de plantão consegue
fazer quase tudo o que quiser” (SARMENTO, Daniel. Livres e Iguais: Estudos de
Direito Constitucional. São Paulo: Lúmen Juris, 2006, p. 200).
Sarmento tem razão. Esse oba-oba
constitucional existe mesmo. E não é só entre os juízes de primeiro grau, mas
em todas as instâncias, inclusive no Supremo Tribunal Federal.
Isso não significa dizer que se deve
abrir mão do sopesamento. Aliás, não dá pra abrir mão do sopesamento, já que
ele é inevitável quando se está diante de um ordenamento jurídico como o
brasileiro que aceita a força normativa dos direitos fundamentais.
O que deve ser feito é tentar melhorar a
argumentação jurídica, buscando dar mais racionalidade ao processo de
justificação do julgamento, através de uma fundamentação mais consistente,
baseada, sobretudo, em dados empíricos e objetivos que reforcem o acerto da
decisão tomada.
Abaixo a katchangada!
George
Marmelstein Lima, Professor
de Direito Constitucional e Juiz Federal em Fortaleza/CE.
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Por ter um pouco
a ver com o post acima, cito a seguinte decisão do STF: HC 94194.
Vou resumir o
caso:
Vicente Ares
Gonzales é um ex-policial civil acusado de envolvimento com a quadrilha que
furtou o Banco Central de Fortaleza. Foi ele quem, supostamente, comandou a
extorsão mediante seqüestro que culminou na morte de um dos principais
responsáveis pelo crime. Além disso, é réu pronunciado por homicídio pelo juiz
da Vara do Júri e Execuções Criminais de São Bernardo do Campo, no ABC
paulista, e responde a processo por porte ilegal de arma e lesão corporal na
Vara Criminal e de Execuções da Comarca de Varginha, em Minas Gerais.
Sua prisão
preventiva foi decretada pelo juiz de primeiro grau (11a Vara/Ce), e foi
confirmada pelo Tribunal Regional Federal da 5a Região, que foi confirmada pelo
Superior Tribunal de Justiça, até que…
… o STF resolveu
soltar o dito cujo.
Em termos
polidos, o Min. Celso de Mello disse que o juiz do caso cometeu uma katchangada
(confirmada pelo TRF e pelo STJ). Para o ministro, a decisão contestada
“apoiou-se em meras suposições destituídas de base empírica idônea, sequer
indicando as razões de concreta necessidade que, se presentes, poderiam
justificar a constrição do status libertatis (estado de liberdade)”.
Particularmente,
gosto dos votos do Min. Celso de Mello. Já o elogiei aqui abertamente no caso
da greve dos servidores públicos e do voto sobre os tratados internacionais
sobre direitos humanos. Mas tentei encontrar, no julgamento acima, qualquer
fundamentação sobre o caso específico que ele estava apreciando e não
encontrei. Foi uma decisão genérica para um caso extremamente peculiar. A
decisão dele cabe para qualquer outra situação. Uma Katchanga Real.
Fonte: https://jus.com.br/artigos/21646/alexy-a-brasileira-ou-a-teoria-da-katchanga
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